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O mágico, o general e a moeda: Anatomia de uma cena de O Rei da TV, baseada na vida de Silvio Santos

Atualizado: 24 de out. de 2022


Estreou no dia 19 de outubro, na plataforma Star+, a série o O Rei da TV, baseada na trajetória do lendário apresentador de TV Silvio Santos. Tive o prazer de escrever essa obra ao lado de uma aguerrida equipe no pré-pandêmico ano de 2019. Agora com a série no ar, gostaria de aproveitar minha experiência na escrita para falar um pouco sobre o processo criativo por trás do seriado e escolher uma cena para dissecá-la.


O Rei da TV foi criada inicialmente por André Barcinski e Ricardo Grynszpan e entrei na equipe de roteiro logo no início do seu desenvolvimento em janeiro de 2019. Nossa primeira tarefa foi escrever o piloto e apresentá-lo para a FOX, que com a compra pela Disney meses depois tornou-se a Star.


Piloto escrito, começamos a nos debruçar sobre o desenvolvimento dos outros 15 episódios, que foram divididos em duas temporadas. Com a adição da roteirista Marcela Macedo e da assistente e pesquisadora Érika Ferreira escrevemos o seriado durante longos nove meses. Posteriormente, com a entrada do criador e diretor-geral Marcus Baldini, a série foi remodelada com a contribuição de mais dois roteiristas (Mikael de Albuquerque na primeira temporada e Anna Francisco na segunda). Para se adequar ao novo estilo e ao orçamento – séries de época são sempre caríssimas – cenas e eventos foram rearranjados, fundidos e transformados.


Para ilustrar o processo criativo da série, selecionei, por motivos didáticos, uma cena concebida e escrita originalmente por mim e que sobreviveu com belíssimos acréscimos no produto final. Espero que dessa forma, seja possível ver a evolução de uma ideia em uma sala de roteiro profissional.


Inicialmente pensada como o clímax do sexto episódio da primeira temporada, o embate final entre Silvio Santos e o general João Figueiredo, ministro-chefe do temível Serviço Nacional de Informações acabou se tornando um dos pontos altos da própria temporada no episódio 8 que vocês podem conferir no Star+.


Vou tentar fazer uma anatomia desta cena e, por isso, é bom avisar que daqui pra frente vamos tocar em spoilers da série. Se você ainda não assistiu, assine o Star+ e prestigie o nosso combalido audiovisual brasileiro. Prometo. Vale à pena.


Originalmente, o sexto episódio dramatizaria como Silvio Santos conquistou sua primeira concessão de televisão, no caso, a TVS em 1975 (na série, a disputa é pela concessão do SBT). Mas como um apresentador popularesco de programa auditório, à época no ar aos domingos da TV Globo, conseguiria dobrar os moralistas militares e conquistar uma emissora para chamar de sua?


Espelhando-se na vida real, colocamos Silvio Santos remodelando sua persona pública a fim de conquistar a confiança da Ditatura Civil-Militar no país. Visto como um popularesco apresentador que exibia brincadeiras e concursos de gosto duvidoso – como o do homem que mais tomava laxante –, Senor Abravanel, nome real do apresentador, precisava mostrar aos militares que era na verdade um grande homem de negócios, dono de dezenas de empresas que faturavam milhões de cruzeiros por mês. Na vida real, esse processo de extreme makeover culminou com uma longa reportagem da revista Veja de 28 de maio de 1975, cujas imagens você pode ver abaixo.



Para adicionar pressão à busca de Silvio pelo seu canal de TV, mostramos o grande risco que seus negócios corriam caso ele ficasse fora do ar. Desde 1960, Silvio alugava horários na TV Paulista - adquirida em 1964 por Roberto Marinho e transformada em TV Globo – e seu contrato na emissora não seria renovado.


A TV Globo estava de olho na publicidade das nove horas que Silvio detinha aos domingos e, ao mesmo tempo, a emissora carioca tinha dado início ao que ficou conhecido como “Padrão Globo de Qualidade”. E nem Dercy Gonçalves, Chacrinha ou Silvio se encaixavam nessa nova visão de TV. Assim, Silvio começa uma corrida contra o tempo para conseguir uma nova emissora, já que ficar fora do ar significaria sua ruína comercial. Sem um programa televisivo como âncora para vender carnês do Baú da Felicidade e desovar os produtos de suas empresas, o negócio desabaria como um castelo de cartas. Além disso, no começo do episódio, também colocamos a famosa piada do bambu e um revoltado censor assistindo ao programa, mostrando que a batalha de Silvio seria árdua.


Assim, a missão do episódio é clara. Silvio precisa conquistar uma concessão de TV e, para isso, precisa conquistar a confiança dos militares. Essa era a linha mestra da trama da década de 70 (o episódio conta ainda a trama do Silvio mais velho em 1988).


Logo no começo do desenvolvimento de uma série, toda sala de roteiro passa pela discussão das principais tramas que serão contadas ao longo de uma temporada. Em O Rei da TV, ficamos alguns meses trabalhando nessas tramas e as dividimos por episódio. No caso do episódio 6, tínhamos a seguinte anotação para a trama da busca por um novo canal de televisão:

Como vocês podem ver, não há aí grandes detalhes, mas apenas o movimento macro da história. Em seguida, cada roteirista ficava responsável por fazer a sinopse e a escaleta de um episódio. Explicando rapidamente: A sinopse é um breve resumo dos acontecimentos e eventos de um episódio com começo, meio e fim. Já a escaleta é o processo seguinte, em que dividimos essa história em cenas. É uma linha de montagem gradativa em que os detalhes vão sendo incorporados até se chegar ao roteiro final.


Durante as discussões do episódio 6, eu sabia que Silvio precisaria convencer os militares de que era confiável para receber uma concessão de TV. Também sabia que haveria um encontro final entre Silvio e o general João Figueiredo. Ok. Mas como seria essa conversa? Como Silvio iria dobrar o general? Eu não tinha ideia e a dúvida me perseguia, como sempre acontece com qualquer roteiro. Você não sabe o que fazer até gradativamente saber.


Voltando para meu carro após um dia de discussões na Gullane – a produtora da série –, uma ideia de diálogo me veio na cabeça. Silvio Santos inventaria uma história sobre sua filha tomar uma injeção e não sentir a agulhada por estar distraída com as brincadeiras do pai. Parece algo prosaico, mas foi o que destravou a cena na minha cabeça. Uma frase do diálogo também surgiu: “Você sabe como é criança, né, general? Quando tá se divertindo, não pensa em outra coisa”. Silvio diria ao general que enquanto ele estivesse distraindo o público com seu grande circo dominical, a população não prestaria atenção na política e no que os militares estavam fazendo com o país.


Mas Silvio não diria com essas palavras, ele falaria pela metáfora da injeção. Silvio utilizaria do subtexto. Subtexto é um dos recursos mais utilizados na criação de diálogos. É quando o personagem transmite suas intenções não nas palavras que são ditas, mas no seu significado subjacente, no que está “debaixo do texto”. Não se trata de um mero recurso da ficção, mas de uma estratégia de argumentação utilizada há milênios pelos seres humanos. Afinal, é sempre mais efetivo convencer alguém sobre algo sem ter que bater de frente.

Sem muito tempo para desenvolver a escaleta já que o roteiro precisaria ser aprovado e entregue logo, anotei rapidamente o seguinte na marcação desta cena:


Quando escrevo escaletas sempre deixo margem para ideias de diálogo virem com o fluxo. Não quer dizer que essas falas acabarão no roteiro final, mas é uma maneira de começar a colocar a cena de pé. Ao final, você provavelmente vai escrever e reescrever uma cena dezenas de vezes, jogar fora inúmeras falas, mas é impressionante como algumas ideias iniciais sobrevivem ao processo. Há quem torça o nariz para escrever ideias de diálogo na fase da escaleta, eu, no entanto, sempre encorajo esse procedimento.


O uso do subtexto ganha ainda mais importância por causa da forma como a conversa entre os dois se desenvolve. No começo, Silvio está tentando mostrar ao general que não é um mero animador de auditório, mas o dono de um bilionário conglomerado de 16 empresas dos mais variados setores, da venda de veículos até negócios agropecuários. Alguém que reúne todas as condições materiais e financeiras para administrar uma emissora de televisão. A Revista Veja seria uma prova. Na capa não está “Silvio Santos”, mas “o senhor Senor Abravanel”. Mas Figueiredo não vê assim. Em Silvio Santos, ele enxerga apenas um animador de auditório que exibe atrações de gosto duvidoso, muito longe da moral pregada pelos militares no poder. Um mero camelô do povo.


A analogia da injeção ganha assim duas intenções. Uma é mostrar que Silvio é inteligente o suficiente para argumentar nas entrelinhas com um general, mostrando ser sim um homem de negócios sagaz e não apenas um apresentador espalhafatoso. A segunda, e mais importante, é Silvio demonstrar que aquilo que é apontado como ponto fraco por seus detratores na intelectualidade e pelo próprio general é, na verdade, seu grande ponto forte.

Silvio admite no diálogo que é, sim, um animador popularesco, alguém que distrai a filha com passes de mágica enquanto toma uma injeção, mas que esse recurso pode ser colocado a serviço dos militares. Por meio do subtexto, Silvio transforma o “defeito” apontado por Figueiredo, no início da cena, em sua grande virtude. Silvio assume ser camelô.


Com essas intenções, comecei a escrever o que seria uma longa cena de debate entre Silvio e Figueiredo em que cada um joga suas cartas. E é justamente quando Silvio parece perder o debate – a crise, o momento em que o personagem é aparentemente derrotado – que ele ressignifica seus argumentos, não mais tentando vender a imagem de um empresário de sucesso, mas assumindo o seu lado animador, tão menosprezado por Figueiredo.


Silvio então inventa a história da injeção na filha que não chorou porque estava sendo distraída por passes de mágica do pai. Enquanto escrevia esse diálogo, me veio a ideia de colocar Silvio fazendo literalmente mágica com uma moeda diante de Figueiredo. Era uma ideia que não tinha aparecido durante a escaleta e não havia sido discutido na sala de roteiro. Essas ideias sempre irão aparecer quando você está conectado à cena que escreve, cabendo ao roteirista recepcioná-las. E Silvio Santos fazendo mágica diante do futuro ditador de plantão do país era uma ideia que não dava para desperdiçar.


O resultado do roteiro original do sexto episódio vocês veem a seguir:





Já a fantástica cena que foi ao ar no oitavo episódio, vocês podem conferir no Star+. Particularmente, adorei como o embate cresceu, a interação do apresentador com todos na sala e como o Silvio Mágico ganhou ainda mais tempo para mostrar seu balé com as mãos. Roteiro é isso. Trabalho coletivo. Parabéns aos diretores, atores e toda a equipe por trás do projeto.


E não deixem de assinar o Star+ para ver a belíssima série produzida pela Gullane e pela Disney. Garanto que vão gostar. Tem pitadas de comédia, melodrama, ousadia lisérgica e um bem-vindo toque de breguice, como não poderia faltar na biografia do dono do SBT. E arrisco dizer que Silvio Santos, diretor de programação, colocaria no ar da sua emissora sem pestanejar. Ma oê!


PS: e se você quiser saber mais informações sobre como escrever séries de TV, confira o curso que ofereço no site www.henriquemelhado.com



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