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A sala de roteiro de Os Under-Undergrounds

Atualizado: 24 de out. de 2022


Em 2016, estreou no canal Nickelodeon e na TV Cultura a animação Os Under-Undergrounds. Após um período passando apenas nas segundas e sextas, a série agora é transmitida todos os dias às 13h. São quatro episódios por dia e a animação vem apresentando bons números de audiência.

Para quem ainda não viu, a animação conta a história de Heitor, um garoto que cai em um bueiro e vai parar no mundo subterrâneo de Underground, um lugar similar ao nosso, mas povoado por mutantes. Lá ele vira guitarrista da banda de Layla, Lud e Bob, enquanto procura o caminho de casa e, claro, se apaixona por Layla, a líder dos Under-Undergrounds.


A série de 26 episódios de 11 minutos foi criada por Hugo Oda e eu participei como roteirista, escrevendo sete episódios. Foram cinco meses muito divertidos na sala de roteiristas. Nesse artigo gostaria de explorar um pouco como foi o processo de trabalho na sala, na minha opinião, a parte mais legal da experiência de ser um roteirista.

Sala de roteiristas é um ambiente que foi criado especificamente para trabalhos voltados para a televisão. Em geral, mais de três roteiristas se reúnem periodicamente para desenvolver e escrever um seriado. Diferentemente do cinema, onde o roteirista trabalha sozinho ou em dupla, o volume de histórias a ser criado para uma série exige a presença de múltiplos roteiristas. Em Friends, por exemplo, eram 12 escritores. Sem medo de errar, posso afirmar que é a experiência mais divertida do trabalho de um roteirista. Cinco pessoas conversando o dia inteiro sobre roteiro, bolando histórias, piadas e falando besteira? Não tem como não ser legal.


Veja por exemplo esses vídeos sobre a sala de roteiristas do seriado Breaking Bad. O processo de escrita de uma das mais premiadas séries de todos os tempos tinha até origami e esculturas de massinha.



Claro que a experiência também exige foco e disciplina. Mas ela precisa ser divertida e livre. Do contrário, o bloqueio é natural. Nada é proibido na sala de roteiristas. Você tem que falar o que vem na sua cabeça. Há momentos em que você sabe que a ideia que vai sugerir é uma grande bobagem, mas o conceito idiota pode despertar uma ideia interessante em outro roteirista. Assim surgem as histórias.

Os Under-Undergrounds


Em Os Under-Undergrounds, a sala de roteiristas era composta por quatro escritores e mais o criador da série. Eu, Keka Reis, Ricardo Grynszpan e Rodolfo Vicentin (e depois Gisela Marques) fomos os responsáveis por desenvolver com Hugo Oda todas as histórias e arcos da série.


Quando nós roteiristas fomos contratados, o projeto já tinha um piloto (primeiro episódio) escrito e animado (você confere ele aqui) além de breves ideias de sinopses para mais 25 episódios. Assim, ao longo de cinco meses, nos reunimos uma vez por semana para desenvolver as histórias, refazer as sinopses, os arcos e escrever os roteiros 2 a 22 da série.


As primeiras semanas foram mais corridas, pois o desenho precisava entrar logo no processo de produção, storyboard e dublagem. Tivemos uma rápida discussão sobre as histórias que queríamos contar na série e já partimos para escrever os quatro primeiros roteiros, correspondentes aos episódios 2 a 5. Eu fiquei logo com o episódio 2, cujo principal desafio era apresentar o mundo Underground e explicar o seu funcionamento para o espectador sem que o episódio parecesse um grande artigo do Wikipedia.

Finalizada essa primeira etapa, pudemos respirar e pensar mais detidamente sobre os arcos gerais da série e seus beats principais.


Mas o que são beats e arcos? Arcos são as histórias que serão contadas ao longo da série e se estendem por mais do que dois episódios. Já beats são os pequenos eventos e ações necessários para contar uma história. Podem ser os beats da temporada ou de cada episódio. De beat em beat as histórias são construídas.


Os arcos da série


A partir das discussões, identificamos os quatro arcos que formariam a primeira temporada da série. Foram eles:


1 – As tentativas de Heitor voltar para casa

2 – A banda

3 – A Agência em busca de Heitor

4 – O romance entre Heitor e Layla (ou Laytor como apelidado pelos fãs)


Cada um desses arcos se misturava ao longo dos episódios e, por vezes, complicavam um ao outro. Heitor voltar para casa, por exemplo, é incompatível com o romance dele com Layla. Isso é um ótimo sinal, aliás, pois adiciona tensão para o público e coloca dilemas para os personagens. Lembre-se, em uma história você tem que fazer o seu personagem sofrer e quebrar a cabeça até atingir o objetivo buscado.


No episódio 12, por exemplo, Heitor tem que escolher entre voltar para a casa em uma rara oportunidade ou se apresentar com a banda no programa do Rufus Delirium. Banda X Casa. Já no episódio 20, Heitor tem uma chance única de regressar à Terra, mas ao mesmo tempo tem um jantar romântico marcado com Layla. Casa X Romance. O que ele escolhe?


Essa maneira de contar uma história não é usual em desenhos animados. Em geral, cada episódio tem uma história fechada que não influencia nas seguintes. Bob Esponja, Apenas um Show, Os Simpsons ou Phineas e Ferb são séries episódicas sem arcos. Cada episódio conta uma história e pode ser visto isoladamente sem prejuízo ao entendimento do público. As coisas mais malucas podem acontecer, mas ao final, tudo volta ao normal como se nenhuma loucura tivesse acontecido.


Os Under-Undergrounds, por outro lado, é uma série com arcos que conta uma história longa e, apesar de cada episódio se fechar em si, quase sempre traz um ponto adicional que será importante para contar o próximo. Por exemplo, antes dos Under-Undergrounds se apresentarem em grandes shows e participarem do concurso que dará a chance de Heitor falar com Kurt e voltar para casa, Bob precisa vencer seu trauma de palco (episódio 6).


Os beats de cada episódio


Com os quatro arcos definidos, a desafio seguinte era definir os beats de cada arco e definir em quais episódios eles cairiam. Por exemplo, em algum momento era preciso explicar que uma agência secreta responsável por manter os mundos underground e da superfície separados estava no rastro do Heitor. Em que episódio isso iria aparecer?

O arco volta para a casa, por exemplo, tinha alguns beats rascunhados:


- Heitor busca saída sozinho

- Descobre que Reverberação conhece a Terra

- Tentam falar com Reverberação

- Aparece concurso


Esses beats do arco posteriormente seriam desdobrados em beats menores e alocados para determinado episódio. Como isso era feito? Dividimos algumas cartolinas em retângulos e cada um deles trazia um número correspondente a um episódio. Em seguida, preenchíamos cada retângulo / episódio com os seus beats, escritos em post-its. Nunca as aulas de recorte e cole na escola fizeram tanto sentido.


Passamos depois a cartolina para uma tabela do Excel:


Esses beats iniciais nunca eram muito aprofundados, já que eles seriam discutidos em grupo mais à frente na hora de escrever as sinopses de cada episódio. Cada roteirista, por sua vez, também era o responsável por desdobrar os beats de sua história no momento de escrever a escaleta. O ideal é ter mais tempo para planejar todos os pontos, mas como nos reuníamos apenas uma vez por semana devido a restrições do orçamento (sim, fazer uma série custa muito dinheiro) foi a solução encontrada.

Como é possível notar também, alguns episódios tinham muitos beats, enquanto outros ficaram rarefeitos. Nenhum era definitivo. O mapa de beats era apenas um referencial que serviria de guia para sabermos os pontos principais da história e ter a certeza de que ela parava em pé.


Durante o processo de discussão das sinopses, por exemplo, o personagem James foi bastante modificado em relação ao que havíamos planejado inicialmente, como veremos a seguir. Já outros beats e histórias caíram por completo durante a discussão individual de cada episódio. E outras histórias surgiram durante as discussões.


Nessa altura, com os quatro primeiros episódios escritos, as personalidades dos personagens bem marcadas e o arco estruturado, já tínhamos um boa noção do que aconteceria na série. Ainda assim, escrever uma série é um processo dinâmico e muitas coisas vão sendo modificadas, cortadas ou acrescentadas. E mesmo quando já estávamos na fase de escrita de cada episódio o arco ia sendo refinado e ajustado.

A partir daí entramos no seguinte esquema, que durava três ou quatro encontros, para cada bloco de quatro episódios, um para cada roteirista:


No primeiro encontro, discutíamos os beats mais a fundo e definíamos as sinopses de quatro episódios. Íamos para casa e cada um escrevia a escaleta (uma sinopse detalhada e já dividida em cenas) de seu episódio. No segundo encontro, debatíamos e melhorávamos as escaletas. Em casa, cada escritor escrevia a primeira versão de seu roteiro. No terceiro encontro, líamos interpretando o roteiro (eu sempre fazia a voz do Bob) para ver o que funcionava ou não.


É muito comum nesta fase descobrir que certa piada não funciona ou o ritmo do roteiro não está legal. É um processo de afinamento coletivo fundamental para melhorar a história. De volta ao computador, na solidão do lar, cada um escrevia o segundo tratamento do roteiro e o entregávamos para a dublagem e para os artistas de storyboard. No encontro seguinte, começávamos a discutir as quatro sinopses seguintes.


Em média, a cada três encontros saíamos com quatro roteiros prontos, uma velocidade um tanto quanto louca, mas com uma equipe experiente e falando a mesma língua tudo deu certo.


O mais difícil desse processo é não perder de vista que cada episódio contribui para contar uma história maior, ou seja, o arco.


A escrita de cada episódio

Vou dar um exemplo de como era o processo de desenvolvimento de um episódio, no caso o de número 11, escrito por mim.


Os beats que eu tinha eram:


1 - James surta com Heitor ET.

2 - Precisam de dinheiro para consertar os instrumentos da banda


Nada muito definido, não? Sem problemas. Em grupo, nós discutimos esses beats e rascunhamos a história que seria contada no episódio.


Logo no começo, a situação sobre a necessidade de dinheiro evoluiu para um misterioso roubo dos instrumentos da banda. Adicionando uma bomba relógio, colocamos que os Unders tinham uma apresentação no mesmo dia.


Outra história que precisávamos contar nesse episódio era o medo que James tem de aliens. Essa situação era nova e não estava planejada durante a discussão dos arcos e beats. Por quê? Porque inicialmente James não era filho de Ozzy, o vilão que persegue Heitor.


A ideia de tornar James filho de Ozzy foi do colega Rodolfo durante as discussões dos episódios. Era uma ideia excelente porque adicionava tensão à história. Todos gostamos imediatamente da ideia, mas precisávamos descobrir agora como encaixá-la no arco geral e realizar as modificações necessárias, que iam da história pregressa do personagem até o seu design. James é um tipo de réptil e sua pele, inicialmente, era verde. Ao se tornar filho de Ozzy, James ganhou a coloração vermelha.



Assim, sendo filho de Ozzy, o vilão que detesta humanos e quer manter a todo custo os dois mundos separados, era natural que James fosse criado com medos de aliens / humanos. Como James lidaria com o fato de seu companheiro de banda vir do mundo da superfície? Esse era um beat importante e precisava ser trabalhado em algum roteiro. O episódio 11 foi o escolhido.

Para mim, esse foi o episódio mais trabalhoso de escrever por não ter apenas uma história, mas três. Se já não é fácil contar uma história em apenas 11 minutos, imagine três. Mas por que três?


Para tornar o episódio mais dinâmico resolvi desdobrar o roubo dos instrumentos em duas tramas. Na primeira, Layla e Bob vão investigar o roubo. Já na segunda, Lud, Heitor e James exploram diversas maneiras de ganhar dinheiro para comprar os instrumentos. Além disso, Heitor e James tinham sua própria trama particular, já que James não acredita que o guitarrista seja um humano / ET.




Estruturar três tramas exige um planejamento cuidadoso na hora de colocar os pontos de virada, os momentos em que a história muda de direção, conferindo dinamismo à narrativa. O esquema foi o seguinte:



No esquema, II significa INCIDENTE INCITANTE (o gatilho que dispara o início da história) e PV representa PONTO DE VIRADA, a ação ou acontecimento que modifica a direção da narrativa.

Como os pontos de virada estruturados, parti para a escrita da escaleta.



Após discutir a primeira versão da escaleta em grupo na sala de roteiristas, fui para a casa escrever a primeira versão do roteiro, que chegou a 16 páginas, um tanto quanto extenso. Em geral, uma página de roteiro equivale a um minuto em tela.

Particularmente, gosto de “atacar” o roteiro quando já tenho a história bem definida na escaleta. Com a garantia de que a história está de pé, me sinto mais seguro e livre para as piadas e diálogos surgirem durante a escrita. Não há a pressão de não saber se a história funciona. Ela funciona, mas agora precisa de cor. Alguns roteiristas, por outro lado, preferem uma escaleta mais enxuta e quebrar a cabeça mesmo na hora de escrever o roteiro. Não há certo e errado. Mas o método que se adéqua melhor a cada escritor. Nesse processo de escrita do roteiro 11 levei dois ou três dias.


De volta à sala, lemos os quatro roteiros do bloco e fizemos sugestões para cada um deles. Às vezes havia tempo para já começar a pensar nas sinopses seguintes. Em casa, fazíamos os ajustes nos roteiros e entregávamos para a equipe de storyboard e dublagem. Abaixo, uma página do roteiro final.


Quando você constrói um episódio que traz mais de uma trama, além dos momentos em que elas se cruzam, o ideal é que um tema una as histórias de alguma forma. Quando escrevi este episódio, o tema que escolhi foi “Nem tudo é o que parece”, que, aliás, é o nome do episódio.

Assim, James descobre que Heitor não é um ET perigoso; Layla percebe que Britney não é a malvada que ela tanto quer parecer e o roubo, na verdade, não aconteceu, era apenas uma surpresa dos pais dos garotos. A música composta por Ruben Feffer vai na mesma toada e chama “As Aparências Enganam”.


Esse esquema de trabalho permaneceu até a entrega do episódio 22. Após o fim da sala de roteiristas, eu ainda escrevi os episódios 23 e 24 de forma separada e os dois últimos ficaram a cargo do diretor geral do seriado, Nelson Botter Jr.


Se você quiser saber um pouco mais sobre esse método de trabalho ou sobre a escrita de roteiros para séries e filmes, você pode se inscrever no meu curso Introdução ao Roteiro aqui.


E quem quiser conferir como ficou todo esse trabalho, não deixe de ver Os Under-Undergrounds no canal Nickelodeon e na TV Cultura. Estamos torcendo por uma segunda temporada. Há ainda muito histórias para contar sobre Heitor, Layla, Bob, Lud e James.


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