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Conflito externo, interno e Breaking Bad



Neste texto gostaria de voltar a uma questão que trisquei no post anterior sobre o filme Missão: Impossível – Nação Secreta, o mais recente exemplar da franquia estrelada por Tom Cruise.

Naquela altura, afirmei que Ethan Hunt, o agente interpretado por Cruise, tem apenas um objetivo externo durante todo o filme – derrotar o vilão – e que ao longa da história calcada em reviravoltas, ele corre pelo mundo perseguindo a ação, da mesma forma que engancha na fuselagem externa de um avião que decola para os céus na primeira cena do fime. Também comparei Hunt com Martin Riggs, o policial interpretado por Mel Gibson em Máquina Mortífera. Riggs não era apenas um policial com a missão de prender os vilões, mas um recém-viúvo suicida que precisava redescobrir um motivo para viver. Dentro dessa concepção, Riggs é um personagem mais complexo e que, devido a sua busca interna, é mais fácil para o público sentir empatia por sua jornada.

Entretanto, um filme governado pela ação externa não é necessariamente inferior a outro que lide com questões internas do protagonista. São apenas histórias, personagens e filmes com objetivos diferentes. Há excelentes filmes de ação “descerebrados” e exemplares horríveis de películas com personagens angustiados pelas pós-modernidade.


Mas qual é exatamente a diferença entre Ethan Hunt e Martin Riggs? O que os diferencia enquanto protagonistas? Antes, porém, é preciso entender o que é um conflito dentro da dramaturgia.


Toda história é basicamente a jornada de alguém que deseja algo e luta contra alguém para atingir esse objetivo. Rápidos exemplos: Harry Potter precisa derrotar Voldemort para salvar seus amigos e o mundo dos bruxos (e dos trouxas). Luke Skywalker luta contra o Império para restaurar a paz numa galáxia muito, muito distante. O professor de química Walter White descobre ter câncer e vira um traficante de metanfetamina para deixar dinheiro para sua família e, no processo, é obrigado a enganar a polícia e derrotar seus oponentes.


Esse jogo de oposições e choque de vontades das sagas Star Wars e Harry Potter e da série Breaking Bad é o que denominamos de conflito.

Há um herói (protagonista) com um objetivo e algo ou alguém (antagonista) que o impede de atingi-lo.


Resumindo, a questão a ser feita para descobrir qual o conflito central da sua história é: “Quem luta contra quem e pelo o quê?”.

Mas o herói de uma história nem sempre tem apenas um objetivo “externo”, ou seja, que se encontra fora dele. Na maioria das vezes, o desafio externo significa derrotar um antagonista ou vilão, embora isso varie. Numa comédia romântica, por exemplo, o objetivo é conquistar o parceiro desejado.


Como vimos, em Máquina Mortífera Riggs tem dois objetivos, um externo e outro interno. O externo, como em todo filme policial, é derrotar os caras maus. O interno, que tornou o personagem memorável e, por tabela, revolucionou o gênero da ação nos anos 80, é superar a morte da esposa para não se matar.


Muitos manuais e cursos discorrem sobre esses níveis de conflito em um personagem. Ricardo Tiezzi, professor na Roteiraria e na pós-graduação em Roteiro da Faap denomina esses dois objetivos como “o que o herói quer” (objetivo externo) e “o que o herói quer mesmo” (objetivo interno).


Robert Mckee no livro Story - Substância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiros vai além e identifica três níveis de conflito: internos, pessoais e extra-pessoais, que juntos formam o “Mundo do personagem”.


Para Mckee, o “o círculo de antagonismo mais próximo no mundo de uma personagem é o próprio ser: sentimentos e emoções, mente e corpo, todos ou qualquer um deles pode ou não reagir de um momento para o outro da forma esperada”.

Já os conflitos pessoais, segundo Mckee, “inscreve relacionamentos pessoais, uniões de intimidade mais profundas que o papel social”. E os extra-pessoais seriam “conflito entre instituições sociais e indivíduos, conflito com indivíduos e conflito com ambientes naturais ou artificiais”.


Didaticamente, eu prefiro juntar o conflito pessoal e extra-pessoal sob a mesma chave de “externo”, afinal a sua raiz se encontra fora do personagem.


Um dos livros que mais gosto para tratar dessa diferença é The Anatomy of Story do professor e consultor John Truby. No livro, não editado no Brasil, ele identifica três pontos chaves para a criação de um personagem: weaknesses (fraquezas ou pontos fracos), need (necessidade) e desire (desejo).


Fraquezas são as falhas do personagem tanto psicológicas como morais e são importantes para haver uma mudança no personagem ao final da história. A falha é algo que segura o personagem, que o impede de ter uma vida “completa”. “Alguma coisa que está faltando dentro dele de forma tão profunda que está arruinando a sua vida”.


Martin Riggs em Máquina Mortífera não está contente com sua própria vida. Ele é irresponsável, errático, impulsivo e certamente vai acabar se matando. Algo precisa mudar. E nós, enquanto público, sabemos e esperamos por essa transformação ao final do filme.


Segundo Truby, “um personagem com certas fraquezas, quando colocado no moedor de uma luta em particular, é forjado e moldado em um novo ser”. Como diz o roteirista Keith Michaels, interpretado por Hugh Grant no filme Rewrite, um personagem que tem algo a ser consertado é sempre mais interessante.


Já a “necessidade” é o que o herói precisa preencher dentro dele para ter uma vida melhor. Geralmente envolve “superar suas fraquezas e mudar ou crescer de alguma forma”. Ainda Truby: “A necessidade é a fonte da história e estabelece todos os passos seguintes”. Outro toque importante de Truby é que o herói não deve ter ciência de sua necessidade no começo da história. Ou seja, a necessidade é o que gera o conflito interno do personagem.


O último ponto fundamental na construção do personagem é o “desejo”. De acordo com o livro The Anatomy of Story, desejo é “o que o herói quer na história, seu objetivo específico”. “Pense no desejo como o caminho da história que o público percorre junto. Todo mundo embarca no ‘trem’ com o herói e todos eles vão atrás do objetivo juntos. Desejo é a força motriz na história, a linha na qual tudo se segura”. Em outras palavras, desejo é o que acarreta o conflito externo.


Truby chama a atenção para não confundir ambos. “Necessidade tem a ver com superar uma fraqueza dentro do personagem. Um herói com uma necessidade está sempre paralisado de alguma forma no começo da sua história por conta de sua fraqueza. Desejo é um objetivo externo ao personagem. Quando o herói descobre seu desejo, ele se move em uma direção específica e toma ações para chegar a seu objetivo (...). A necessidade permite ao público ver como o herói precisa mudar para ter uma vida melhor. É a chave de toda a história, mas permanece escondida, por baixo da superfície. (...). O desejo está na superfície e o público acha que a história é sobre aquilo”.


O conflito externo de Martin Riggs é deter uma quadrilha de traficantes de drogas. O interno é superar a morte da esposa para poder viver dali por diante. Essa é a verdadeira jornada de Riggs. Reencontrar um sentido para a vida. E não prender traficantes.


Mas o problema particular do personagem não permanece isolado do seu objetivo externo. A necessidade parte de um problema interno do protagonista, mas ele precisa resolvê-lo para alcançar o seu objetivo externo. Luke Skywalker é um pacato, sonhador e ingênuo fazendeiro que nunca viu muito ação na vida. Com a missão de salvar a princesa Leia, Luke precisa superar seus medos e aprender a usar a Força para enfrentar o Império que chacinou seus tios. E Luke, de fato, se torna um cavaleiro jedi hábil e seguro em O Retorno de Jedi, a terceira parte da trilogia original.


Na série Velhos Lobos, de autoria daquele que vos escreve, Alex é um viúvo de 70 anos que resolve ir atrás dos antigos companheiros dos The Wolves, banda obscura dos anos 60, após a morte do ex-baterista. Esse é o seu desafio externo: retomar a banda. Mas o que move Alex não é isso. Ao saber do falecimento do antigo companheiro e constatar a proximidade da morte, Alex decide que não vai terminar a vida em uma cama de hospital. Ele não vai morrer sem tentar realizar seu antigo sonho roqueiro. E é por isso que ele decide ir atrás dos velhos camaradas.


O conflito interno não é apenas o que move o personagem, guarda sua substância e está por trás de todas as suas ações. Ao identificar a necessidade do personagem, o escritor consegue criar cenas mais precisas e que reflitam verdadeiramente o seu protagonista. E mais do que isso, o conflito interno é o que faz o personagem “falar”.

Quem é o Walter White de Breaking Bad (série criada por Vince Gilligan)? O personagem interpretado por Bryan Cranston é um professor de química que, após descobrir um câncer terminal, começa a produzir metanfetamina para garantir a sobrevivência da família após sua morte. Mas o homem não é movido apenas por essa missão “nobre”. O que Walter White realmente quer é não ser mais passado para trás na vida.


No início da história, sabemos que Walter é um químico brilhante – um quadro na sua casa indica um prêmio que recebeu no passado -, mas que trabalha como professor de um colégio público e que também se “humilha” em um lava-rápido, por vezes limpando os carros dos próprios alunos, para equilibrar o orçamento. Para piorar, sua mulher está grávida. Esse é o pano de fundo quando ele descobre um câncer de pulmão terminal. Ao longo da série, entretanto, o público fica sabendo que Walter teve a chance de ficar rico quando criou uma empresa de química com os antigos colegas Elliott e Gretchen. Mas por motivos que não ficam muito claros, talvez ciúmes de Gretchen que casou com Elliott, Walter não permaneceu na empresa, a qual se tornou um complexo multimilionário. O importante é que Walter sente que teve uma chance única de ficar rico, o que resolveria todos os seus atuais problemas.


Mas a sentença de morte, na forma de um câncer, em vez de paralisar liberta Walter. Ele não tem mais nada a perder. No piloto, o ex-aluno e agora companheiro de tráfico, Jesse Pinkman pergunta por que Walter, um professor certinho e rigoroso decide produzir metanfetamina. E ele não responde que o motivo é sua família. “Eu acordei”, avisa o homem que se transformará em um dos maiores vilões do entretenimento moderno.


Walter despertou. Dessa vez ele vai conseguir tudo aquilo que ele acha que merece, eliminando um a um os obstáculos que se colocarem em seu caminho para se tornar o maior traficante do Novo México. E seu novo império multimilionário será controlado com mão de ferro.

É esse querer interno, que não admitirá ser passado para trás e que se orgulha do poder alcançado, que “fala” em dois dos melhores diálogos da série, dos quais saíram duas de suas mais antológicas frases: “Eu sou o perigo” e “Diga o meu nome”



Do lado externo, Walter quer apenas ajudar sua família. Internamente, não será mais passado para trás, ainda que isso coloque sua própria família em risco. Um paradoxo, não? E isso sempre torna as coisas mais interessantes para o público.


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