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Ação ou Personagem? Qual é o mais importante?


Logo na primeira cena de Missão: Impossível – Nação Secreta (escrito e dirigido por Christopher McQuarrie), o quinto filme da franquia comandada por Tom Cruise, o agente Ethan Hunt precisa deter um avião que está prestes a decolar e leva um artefato qualquer que causará a desgraça do mundo. Sem que o hacker Benji (o sempre engraçado Simon Pegg) consiga deter a aeronave em solo, Ethan não tem dúvidas. Ele corre como um louco pela pista de vôo e se agarra à fuselagem lateral do avião, que decola com o agente preso do lado de fora, como é visto no pôster do filme. Cruise fez a cena sem dublês em mais uma de suas peripécias perigosas que fazem os produtores e as companhias de seguro dos estúdios arrancarem os cabelos.

A partir desse momento, o filme é uma correria desenfreada e global de Ethan Hunt para desmascarar uma agência secreta vilanesca, a tal Nação Secreta do título, que deseja alterar o equilíbrio de poder do mundo. Com o fim do IMF, a agência de Ethan, ele cai na clandestinidade para perseguir os vilões que ele nem mesmo sabe quem são.

Não tenha dúvidas. O filme é muito divertido e entrega a ação ininterrupta que promete. É talvez o melhor filme da franquia que impele o protagonista para desafios, bem, impossíveis.


Como nos outros representantes da série – com exceção talvez do confuso primeiro –, o filme se calca na ação exagerada e em viradas constantes da trama. Quando o espectador começa a juntar as peças do quebra-cabeça e a entender o que se passa há uma nova virada, mais peças para juntar e uma cena de ação que nos faz esquecer todo o raciocínio. Ethan Hunt, por sua vez, guiado apenas pelo seu senso de cumprimento do dever – exterminar os caras maus – é jogado de um lado para o outro do mundo perseguindo a ação, tal como corre para se enganchar no avião no começo do filme.

E é justamente essa cena inicial, que reflete a dinâmica do filme como um todo, que me traz a uma velha questão da criação de uma história. O que é mais importante, ação ou personagem?


Robert Mckee, o papa de roteiros preferido de 11 em cada 10 aspirantes, diria que essa é uma falsa dicotomia já que personagem é ação e vice-versa. OK. Mas isso não ajuda muito. Haveria a predominância de um sobre o outro?

Eu diria que não há certo ou errado. Apenas filmes e personagens com objetivos diferentes.


Toda a série Missão: Impossível, a franquia 007, Indiana Jones e grande parte dos filmes de ação e policiais são guiados pela persona de um herói que tem como objetivo principal derrotar o vilão. Por vezes ele também quer ficar com a mocinha, mas isso é um detalhe. O protagonista pode ser legalista, durão, inteligente ou bronco, mas o macro-objetivo, como em qualquer história clássica, é superar os obstáculos e derrotar o vilão. No caso das franquias 007 e Missão: Impossível é exatamente isso que o público quer e é isso o que ele vai ter.


Entretanto, é bem provável que se você trocasse Hunt por Bond não faria tanta diferença para o trama de seus filmes. Claro, 007 é britânico, charmoso e mulherengo enquanto Ethan Hunt é... Tom Cruise. Essa, no entanto, é a casca externa dos personagens, que renderia momentos isolados no filme. Também não estamos falando do tom do filme. A partir de 007 - Cassino Royale (escrito por Neal Purvis & Robert Wade e Paul Haggis e dirigido por Martin Campbell), que deu início a fase Daniel Craig, os filmes de Bond são mais austeros, sombrios e menos canastras (nada de mandíbulas de aço sobre o bondinho do Pão de Açúcar), enquanto Missão: Impossível opta por momentos de humor e não se leva tão a sério.


Mas tanto James Bond, como Ethan Hunt são super agentes, realizam atos impraticáveis para nós humanos, têm gadgets legais e salvam o mundo sem muitas escoriações. São fundamentalmente personagens que engancham na ação e a perseguem durante todo o filme, assim como Hunt se segura na fuselagem de um avião que decola para os céus. Hunt e Bond são protagonistas com apenas objetivos externos: derrotar o vilão. E suas características internas, ou a própria ausência delas, não afetam a sua forma de agir. Diante de um plano vilanesco farão sempre o mesmo. Sem dúvidas ou hesitações.

Obviamente que aqui não estamos discutindo a passividade do protagonista. Caso o herói da história não aja ou apenas reaja há um grave erro de construção – ou não, mas aqui estamos falando do design clássico de roteiro.


No filme Rewrite (escrito e dirigido por Marc Lawrence), Hugh Grant é um roteirista que ganhou um Oscar anos atrás, mas não consegue mais emplacar nenhuma história. O jeito é dar aulas para sobreviver. Diante da sua classe ele diz o seguinte: “A personagem é tudo. Felizmente, não na vida, mas na história. Tenha a certeza de que é a personagem quem conduz a trama e não o contrário”.


Em Missão: Impossível – Nação Secreta, Ethan toma a decisão de cair na clandestinidade, reúne aliados e conduz a sua própria investigação para descobrir quem está por trás da Nação Secreta. Ele não é passivo. Ele age. Seu objetivo é capturar o vilão e ele não medirá esforços para isso.


Mas não há, de modo algum, uma procura interna que guie suas ações. Apenas um agente secreto que persegue o vilão porque esse é o seu dever. Hunt não é um personagem complexo. E por isso poderia ser facilmente trocado por outro protagonista. Não é a toa que a introdução de Jeremy Renner no quarto filme da série teve a intenção de abrir a possibilidade para o ator assumir a franquia caso Tom Cruise se tornasse caro demais para o estúdio.


Como disse, não há nada errado nisso. O filme é sobre missões impossíveis. E eu não quero ver um personagem relutante ou choramingado. Quero ver ação desenfreada e como o personagem vai se safar de invadir uma fortaleza aquática sem respirar por 3 minutos. O personagem foi criado com esse objetivo e cumpre muito bem o seu papel.

Até os anos 80 estávamos acostumados às máquinas de matar na forma de Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Charles Bronson. O herói era alguém que massacrava uma miríade de bandidos até chegar ao objetivo final de botar uma bala na cabeça do vilão. Não havia espaço para dramas internos ou reflexões. Então veio o filme que revolucionou o gênero de ação: Máquina Mortífera, escrito por Shane Black e dirigido por Richard Donner em 1987.


O filme trazia uma premissa clássica e mundana de dois policiais, Martin Riggs (Mel Gibson) e Roger Murtaugh (Danny Glover), contra um grupo de traficantes de drogas.

O toque de limão de Black é que Martin Riggs não é apenas um policial corajoso e bom no que faz. Ele é um sujeito perturbado e com tendências suicidas após a morte da esposa. Roger “I’m too old for this shit” Murtaugh, por sua vez, quer apenas se manter vivo para chegar à aposentaria pré-agendada.

Riggs, claro, é um agente da lei que vai cumprir a sua missão, mas também é alguém que precisa reencontrar uma motivo para viver. E sua tendência suicida determina como ele conduz a perseguição aos traficantes. Toda a ação do filme é guiada por essa busca interna do protagonista.


Assim, não é possível trocar Riggs por um herói genérico que apenas cumpre seu papel como agente da lei. Para ele, não basta derrotar o vilão e voltar para casa como fariam Hunt e Bond. Ele é um cara imperfeito e vulnerável, não uma máquina, embora a tradução errada do título original. Assim é Riggs como também foi no ano seguinte o John McClane de Bruce Willis em Duro de Matar (escritor por Jeb Stuart e Steven E. de Souza, dirigido por John McTiernan), um policial normal que esfola todo pé em cacos de vidro – mas não como o John McClane de Duro de Matar 4.0 que derruba um helicóptero com um carro.


Em certo momento de Máquina Mortífera, Riggs vê um homem no alto de um prédio que ameaça se matar. O policial joga o protocolo às favas e também vai à beirada do prédio para, diz ele, apenas conversar. Veja o que ele faz e repare no olhar de louco de Gibson.




Em outra cena, Riggs é feito refém por um bandido e pede que seus companheiros policiais atirem mesmo assim.




Higgs é um suicida cujas ações para derrotar os vilões são influenciadas por essa “falha” trágica e não apenas motivadas pelo cumprimento do dever. Ele é destemido não porque é um agente da lei corajoso, mas porque quer se matar. E ao mesmo tempo precisa provar a si próprio que sua vida ainda tem algum valor após a morte da esposa. É um personagem muito mais complexo, o que enriquece a experiência cinematográfica do espectador.

Comparar filmes com propostas diferentes, entretanto, é algo sempre reducionista. E tanto Máquina Mortífera como Missão: Impossível são extremamente eficientes em seus objetivos. Mas eu aposto que você se importa muito mais com Martin Higgs do que com Ethan Hunt.


Em outra parte do filme Rewrite, o roteirista / professor Keith Michaels (Hugh Grant) tem o seguinte diálogo com Karen (Bella Heathcote), uma aluna de sua disciplina:


KEITH: Seu personagem do pai é um egoísta, rico, narcisista e mulherengo.


KAREN: Eu sei. Muito antipático.


KEITH: Não, eu adorei ele. É fantástico.


KAREN: Você adorou? Isto é perverso.


KEITH: Ele é um personagem muito bem desenhado. O problema está com a filha. Ela parece um papel fino, sabe? Ela é uma boa filha, ela é uma boa estudante... não há falhas, nada a ser consertado.


KAREN: E daí? O pai que precisa ser consertado.


KEITH: É isso que faz dele um personagem tão interessante.


Riggs é um personagem que precisa ser consertado. E por isso tão mais interessante e identificável do que Ethan Hunt.


Alguém, no entanto, apontaria que Riggs é um cara do mundo “real”, enquanto Ethan Hunt é um agente secreto “impossível” como todos os agentes secretos cinematográficos. Talvez. A franquia Bourne, porém, me parece um pouco diferente.

Ali está um agente secreto com amnésia em busca de sua identidade que vira alvo de quem o criou, no caso a CIA. Claro, Bourne vai derrotar os caras maus, mas a sua relutância é imprescindível na construção da trama. Aquele cara realmente tem um problema interno: ele não sabe quem é e não quer agir como uma máquina protocolar a serviço da CIA. Bourne quer uma vida normal. E um herói que questiona o seu papel tem potencial para ficar muito mais interessante. Não é assim com o próprio Robocop ao relembrar as memórias do antigo Alex Murphy?


Qual construção é a mais correta? Um personagem sem dúvidas que corre atrás da ação somente em busca de um objetivo externo ou um protagonista que reúne falhas individuais.


Ora, depende do filme e do objetivo da sua história. Bourne não quer salvar o mundo. Quer apenas descobrir quem ele é. É uma máquina de matar, mas uma máquina com dúvidas. Já Riggs precisa redescobrir um motivo para viver. Ao contrário de 007 e Ethan Hunt que precisam apenas derrotar perigosos vilões. E todos são excelentes filmes de ação. E não há nada como um bom filme de ação com sequências bem construídas e ritmadas. Embora, particularmente, eu prefira personagens com certa complexidade interna. E desconfio que o público, de maneira geral, também.

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